terça-feira, 3 de março de 2009

"Construções", MP

Para os meus Johns e Sophies. Sabem quem.
– “A luz do mundo”. Recordo-me de ter visto algures no meio das páginas tocadas pelo futuro incerto – disse John –; Era tão estático que cada pausa fazia mentir a realidade do momento dissolvido. Uma pausa, sim, uma pausa que contava com os segundos interrompidos à chama da nossa existência.

Os seus olhos grandes e azuis viraram-se de novo para Sophie, mas nada mudou. O sentimento que parecia abalado pela distância temporal e física não mudou nada. Depois de sessenta e um anos, a sensação de segurança manteve-se e o reencontro fez lembrar os tempos da inseparável cumplicidade.

– Querido John – disse Sophie –, nada pode ter mudado depois destes anos em que estivemos longe, a vontade do “amigos para sempre” não foi possível esquecer…
– Nem eu esqueci – respondeu –, tu és tão especial como os momentos na casa, ainda te lembras?
Sophie não hesitou, começou a imaginar a infância que juntos passaram, rodeados pelas então modernas paredes, faixas que beijavam o chão e o tecto, num vigorante verde contrastava com o triste roxo da poltrona onde o avô de Sophie passava os serões, de cigarrilha no bolso e um cigarro incompleto na mesinha do whisky.
– Era tão diferente… – comenta agarrada à bengala encostada ao banco – parece que ainda estou no velho jardim contigo debaixo da nossa árvore.
– Ah, sim, a nossa árvore dos segredos. Como ainda me lembro – remete John para o passado tão querido – das partidas que te preguei, dos sustos que apanhávamos quando o jardineiro... como se chamava?
– Joseph...
– Sim, quando o Joseph se escondia nos arbustos e saía de lá com dois galhos em forma de mãos... parecia que nos ia agarrar!
– Pois era... mas o que mais gostávamos era de trepar à nossa árvore.
– Lá de cima víamos tudo – completa John – o mundo era tão pequeno... a fonte do casarão em frente era mínima... a nossa perspectiva do mundo tornava tudo quase que insignificante mas era esse mundo que era perfeito.
– A perfeição, John, tornava tudo tão belo: a realidade era banal para duas pequenas crianças em que o Universo não passava de um pequeno grão no imenso céu azul.

A conversa continuou por algumas horas. O sol pôs-se e, de manhã, um novo dia trouxe mais alegrias à lembrança de Sophie e John.

– Eu nunca gostei de estar na casa grande – recorda Sophie – nunca foi suficiente para as nossas brincadeiras, nunca passámos uma tarde sem que o Joseph nos conseguisse apanhar quando roubávamos as rosas do canteiro da prima Mary...
– Mas conseguíamos sempre sobreviver à tortura dos fins de tarde chuvosos... Lembras-te da biblioteca?
– Lembro-me tão bem, John... das cores dos livros que vinham da América para o meu avô... nunca cheguei a descobrir o verdadeiro assunto, pareciam rabiscos de paisagens, mas como nem as letras sabia, nunca consegui decifrar os mistérios microscópicos das letras minúsculas!
– Não brinques... – diz John com um sorriso saudoso do passado – tu sempre gostaste daquelas pinturas, foi por isso que decidiste ir para o atelier da Mary quando acabaste o liceu. Sempre gostaste de desenhar...
– Os ramos das árvores… – interrompe Sophie – pensava que eram a única coisa que não mudava naquele jardim... tudo o resto era inconstante e a atmosfera tão leve fazia tudo dançar por todo o lado...
– Não conseguia perceber porque os amigos do teu avô, quando iam jogar dominó, diziam que o jardim não era suficientemente grande para duas crianças... – reflecte John – a aristocracia não os fazia entender que mais encerrados estavam eles na sala onde passavam longas horas a ouvir as novidades que vinham do centro da cidade.
– Nós nunca perdemos a infância que nos deram... estivemos sempre juntos na casa da fachada verde para onde te mudaste uns anos depois.
– Essa casa era diferente...
– A realidade era outra – diz Sophie – o jardim era pequeno e os tempos foram passados dentro de casa, mas também éramos mais velhos. O meu avô, com as últimas libras da sua reforma foi para a Suíça e ficámos sem o Joseph que voltou para a sua casa em Carlisle, lá no norte…
– Só a Mary nos fazia companhia… no meio dos seus quadros encontravas sempre telas novas que escondias na varanda para depois pintarmos.
– E foi assim, naquela pequena varanda, que a nossa amizade nos tornou ainda mais inseparáveis! Tínhamos sempre as manhãs de sábado ocupadas a escrever na tela o que nos vinha à cabeça… Tu escrevias sobre mim e eu sobre ti… – lembra Sophie.
– Os momentos em que pegavas no pincel e, em letras garrafais, escrevias o meu nome e por baixo… – diz John.
– Sublinhavas e escrevias o meu – interrompe –. Para nós as tintas serviam para pintar a nossa amizade… conseguíamos tornar aquela simplicidade tão importante como o nosso mundo. Éramos tão felizes…
– Já não és?!
– A tua amizade é o que me resta da casa grande, agora pequena e velha…

Sophie e John continuaram a relembrar os velhos tempos durante algumas horas… Hoje, na casa para onde John se tinha mudado, Mary vive com os netos… a varanda da casa ruiu. A “luz do mundo” apagou-se. A vontade de “amigos para sempre” cumpriu-se.

Sem comentários:

Enviar um comentário